Vi, com o passar dos anos, diferentes descrições dos fatos que deram ensejo a estes versos, inclusive variando de Juiz que despachou nos autos. Penso que a versão mais elaborada da decisão judicial foi uma interpolação posterior à história verdadeira, no intuito de exaltar a beleza da resposta, sem demérito algum ao texto original.
Conta-se que boêmios entoavam suas canções, bem adentrada a madrugada, quando surge uma ronda da polícia que, sob o pretexto de que perturbavam o sossego público, proíbe aquela serenata e recolhe o violão à delegacia. O advogado investido na causa por eles, notório político e escritor, elaborou a sua petição em forma de versos, por sugestão do Juiz, requerendo a devolução do referido instrumento musical.
RONALDO CUNHA LIMA
O instrumento do crime que se arrola
Neste processo de contravenção,
Não é faca, revólver ou pistola.
É simplesmente, Doutor, um violão...
Neste processo de contravenção,
Não é faca, revólver ou pistola.
É simplesmente, Doutor, um violão...
Um violão, Doutor, que em verdade
Não matou, nem feriu um cidadão.
Feriu, sim, a sensibilidade
De quem o ouviu vibrar na solidão!
Não matou, nem feriu um cidadão.
Feriu, sim, a sensibilidade
De quem o ouviu vibrar na solidão!
Um violão é sempre uma ternura,
Instrumento de amor e de saudade.
O crime a ele nunca se mistura,
Entre ambos inexiste afinidade.
Instrumento de amor e de saudade.
O crime a ele nunca se mistura,
Entre ambos inexiste afinidade.
O violão é próprio dos cantores,
Dos menestréis de alma enternecida,
Que cantam as mágoas que povoam a vida,
E sufocam as suas próprias dores!
Dos menestréis de alma enternecida,
Que cantam as mágoas que povoam a vida,
E sufocam as suas próprias dores!
O violão é música e é canção.
É sentimento, é vida, é alegria.
É pureza e néctar que extasia.
É a dor espiritual do coração!
É sentimento, é vida, é alegria.
É pureza e néctar que extasia.
É a dor espiritual do coração!
Seu viver, como o nosso, é transitório,
Mas seu destino, não! Se perpetua.
Ele nasceu para cantar na rua
E não pra ser arquivo de cartório!
Mas seu destino, não! Se perpetua.
Ele nasceu para cantar na rua
E não pra ser arquivo de cartório!
Mande soltá-lo pelo amor da noite,
Que se sente vazia em suas horas,
Pra que volte a sentir o terno açoite
De suas notas leves e sonoras!
Que se sente vazia em suas horas,
Pra que volte a sentir o terno açoite
De suas notas leves e sonoras!
Libere o violão, Doutor Juiz,
Em nome da Justiça e do Direito.
É crime, porventura, o infeliz
Cantar as mágoas que lhe enchem o peito?
Em nome da Justiça e do Direito.
É crime, porventura, o infeliz
Cantar as mágoas que lhe enchem o peito?
Será crime, afinal, será pecado,
Será delito de tão vis horrores,
Perambular na rua o desgraçado
Derramando na praça suas dores?
Será delito de tão vis horrores,
Perambular na rua o desgraçado
Derramando na praça suas dores?
Mande, pois, libertá-lo da agonia
(a consciência assim nos insinua),
Não sufoque o cantor que vem da rua,
Que vem da noite pra saudar o dia.
(a consciência assim nos insinua),
Não sufoque o cantor que vem da rua,
Que vem da noite pra saudar o dia.
É o apelo que aqui lhe dirigimos,
Na certeza do seu acolhimento,
Juntada desta aos autos nós pedimos,
E pedimos, também, DEFERIMENTO...
Na certeza do seu acolhimento,
Juntada desta aos autos nós pedimos,
E pedimos, também, DEFERIMENTO...
* * *
O despacho do Juiz:
ARTHUR MOURA
Juiz da 2ª Comarca de Campina Grande
Juiz da 2ª Comarca de Campina Grande
Para que eu não carregue
Remorsos no coração,
Determino que se entregue
A seu dono o violão!
Remorsos no coração,
Determino que se entregue
A seu dono o violão!
* * *
Segunda versão do despacho:
AFONSO NUNES DE SENA Juiz de Direito
Segunda versão do despacho:
AFONSO NUNES DE SENA Juiz de Direito
Recebo a petição escrita em verso,
E despachando-a sem autuação,
Verbero o ato vil, rude e perverso,
Que prende, no cartório, um violão.
E despachando-a sem autuação,
Verbero o ato vil, rude e perverso,
Que prende, no cartório, um violão.
Emudecer a prima e o bordão
Nos confins de um arquivo, em sobra imerso,
É desumana e vil destruição
De tudo o que há de belo no universo.
Nos confins de um arquivo, em sobra imerso,
É desumana e vil destruição
De tudo o que há de belo no universo.
Que seja solto, ainda que a desoras,
E volte à rua, em vida transviada,
Num esbanjar de lágrimas sonoras.
E volte à rua, em vida transviada,
Num esbanjar de lágrimas sonoras.
Se grato for, acaso, ao que lhe fiz,
Noite de lua, plena madrugada,
Venha tocar à porta do juiz.
Noite de lua, plena madrugada,
Venha tocar à porta do juiz.
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